* Johanna Richter, para quem Mahler escreveu Chants d'un Compagnon Errant
.
..
.da voz e da música,
da palavra e do silêncio
.
.
Henri Matisse. La Musique, 1910
.
.
Hammershoi (1864-1916)
.
.
.
de quando o silêncio se faz música, ou a construção da música do silêncio
.
Porém, musica-se o silêncio? Mahler, o pensador, parece tê-lo demonstrado. A Primeira Sinfonia de Mahler, um som que repousa sobre o silêncio.
Mahler. Symphony no. 1, 1st mov. part 1, Eschenbach
.
.
.
Qu’est-ce qui vous a pris de mettre de la musique sur ma musique?
.
.
Verlaine a Gabriel Fauré, após este haver musicado um dos seus poemas
.
.
Musicar um texto é colocar música sobre música? Intruso a pretender dissecar o déjà fait? Musicar a palavra é uma atitude de transgressão?
.
.
.
ESTRAGON:
I remember the maps of the Holy Land. Coloured they were. Very pretty. The Dead Sea was pale blue. The very look of it made me thirsty. That's where we'll go, I used to say, that's where we'll go for our honeymoon. We'll swim. We'll be happy.
VLADIMIR:
You should have been a poet.
ESTRAGON:
I was. (Gesture towards his rags .) Isn't that obvious?
Silence.
VLADIMIR:
Where was I . . . How's your foot?
ESTRAGON:
Swelling visibly.
VLADIMIR:
Ah yes, the two thieves. Do you remember the story?
ESTRAGON:
No.
VLADIMIR:
Shall I tell it to you?
ESTRAGON:
No.
VLADIMIR:
It'll pass the time. (Pause.) Two thieves, crucified at the same time as our Saviour. One—
ESTRAGON:
Our what?
VLADIMIR:
Our Saviour. Two thieves. One is supposed to have been saved and the other... (he searches for the contrary of saved)... damned.
ESTRAGON:
Saved from what?
VLADIMIR:
Hell.
ESTRAGON:
I'm going.
He does not move.
.
.
Samuel Beckett. Waiting for Godot. Act I
.
.
O Teatro é o lugar da comunicação, actores e público em partilha e comunhão. Operando a ruptura com os géneros clássicos, o Teatro do Absurdo. Resultado da descrença humanista pós Segunda Grande Guerra, um teatro ausente de comunicação. Waiting for Godot, a espera do impossível, Beckett a oferecer-nos o relato do absurdo do homem e da vida. Becket, o texto minimalista. Beckett e a palavra a dizer o silêncio.
.
.
“(…)I do not believe that the text of Godot can support the prolongations which a setting in music would confer to him inevitably. The part like very dramatic, yes, but not the verbal detail. Because it is about a word whose function is not so much to have a direction to fight, badly I hope, against silence, and to return there. I thus see it with difficulty integral part of a sound world.”
.
.
Samuel Beckett, 11 de Março de 1954
.
.
.
É tão impossível assim musicar Beckett? A criação literária é, por si mesma, musical, a poesia, por excelência, tem uma musicalidade inerente aos jogos de palavras e figuras de estilo. Mas o texto de Becket, silêncio introspecção, retorno ao eu essencial, será impróprio para que dele se faça música?
.
.
Ao invés, a Ópera, simbiose de várias artes, arte una querendo dizer todas as outras, aspira a ser literatura, intenção de teatro, comédia ou drama, ainda canto e melodia. Como trata, porém, ela a palavra, que papel nela representa a música?
.
Mas eis que, também, a música se torna representação. Sarasate, o romântico, virtuoso entre virtuosos, cor e movimento, leva-nos à imaginação de cenários, sem necessidade da palavra ou da coreografia. É então a música a remeter, ela mesma, a outras artes.
Pablo de Sarasate (1844-1908) Zigeunerweisen, Carmen Fantasy, Navarra…
Sarasate. Carmen Fantasy, Part 1 of 2, Gil Shaham & Claudio Abbado
.
André Derain. Harlequin et Pierrot, c.1924
.
.
.
Que as artes se tocam, é um facto. Que uma arte pode dar vida a outra, enriquecê-la, promover novas leituras, outro facto. Criatividade a crescer da criatividade. Transformar, travestir. O objecto artístico, qualquer que ele seja, não é estático, metamorfoseia-se. O dito e o não-dito.
.
.
A pintura executou a música e figurou o silêncio. O Teatro expressou a palavra e representou o silêncio. A música recitou a palavra e verbalizou o silêncio.
.
.
.
Como concluir se não com poesia? O poeta do silêncio e da palavra, Eugénio de Andrade, pois sim!
.
São como um cristal,
as palavras.
Algumas um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.
Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.
Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.
Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?
.
Eugénio de Andrade, As Palavras
.
Quando a ternura
parece já do seu ofício fatigada,
e o sono, a mais incerta barca,
inda demora,
quando azuis irrompem
os teus olhos
e procuram
nos meus navegação segura,
é que eu te falo das palavras
desamparadas e desertas,
pelo silêncio fascinadas.
.
Eugénio de Andrade, O Silêncio
.
.
.
Gustav Mahler. Sinfonia Número 1, em D maior, 1888-94
Samuel Beckett. À Espera de Godot, 1948
1. http://www.thelinebeginstoblur.com/store/images/uploads/11.jpg
2. Waiting for Godot: Peter Hall's production in www.telegraph.co.uk.../2006/10/11/btgodot11.xml
.
.